Muita gente afrescalhada reclama que, atualmente, não se pode fazer piada com nada e que tudo ofende: "como assim não pode mais fantasia de índio no carnaval?". O caso é que a imagem até então predominante do que significava ser indígena era coalhada de estereótipos racistas devido aos detentores dos meios tradicionais de informação e cultura (velhos brancos broxas) serem uns tapados ignorantes. O que tem acontecido é que, com apoio da internet, membros e conhecedores profundos de outras culturas puderam ter voz e questionar essas representações tacanhas de atividade de escolinha e música da Xuxa - que só vão destruir a infância de quem ainda quiser permanecer infantil mesmo depois de adulto.
Uma obra que acho que contribui bravamente nisso é A ALMA QUE CAIU DO CORPO, publicado pela Editora Veneta, escrito e ilustrado por Andre Toral, pesquisador, consultor e indigenista com mais de 30 anos de experiência com indígenas, que, ao longo da carreira, colocou em quadrinhos episódios reais que lhe eram contados, ou que ele mesmo testemunhava, ou que conheceu em registros históricos. O livro traz 9 dessas quadrinizações realizadas entre a década de 1980 e a de 2010, com histórias tanto curtinhas como mais longas, que se passam no passado colonial brasileiro e em tempos mais recentes.
Uma das principais é O Negócio do Sertão que, como o título diz, traz detalhes de como operava uma expediçao de entrada paulista Brasil adentro e quais ganhos esperava-se ter com ela - tanto para os brancos como para os indígenas, sim! Chama a atenção, durante uma reunião na aldeia, um povo discutir se deve ou não atacar os forasteiros porque, entre outros motivos, precisa de facão e machado novos. Nessa dinâmica, alguns laços de cooperação são criados, mas todos muito frágeis, rompidos em violência por reveses causados pelos mais variados motivos.
Outra história notável é O Caso dos Xis, sobre um povo assim chamado pelos brancos por sua aldeia estar marcada por um X no mapa, cujos membros trabalhavam em uma fazenda vizinha. Quando, em um dia de trabalho, descobrem no roçado um tembetá (adorno de lábio) típico deles, passam a reivindicar aquela terra. No conflito, um de seus membros recebe o espírito de um xamã famoso por episódios de audácia e bravura, que o guia para liderar os Xis em ações que se desdobram na conquista da demarcação de suas terras.
Completamente distante das narrativas dos velhos livros escolares dos anos primários e das cantigas dos 10 indiozinhos num pequeno bote, A ALMA QUE CAIU DO CORPO aproxima qualquer leitor dos anseios e dilemas indígenas com competência e talento. Admirável conhecedor do tema, André Toral traz para nós, civilizados ignorantes, pessoas de outra cultura que estão constantemente pensando e sentindo sobre si, sobre o outro e sobre seu meio, agindo e reagindo com muita inteligência e emoção ao que existe à sua volta.
Gosto muito de temáticas relacionadas aos povos indígenas, e, mesmo apoiando Baby do Brasil em achar que todo dia é dia deles, no dia que lhes foi conferido oficialmente, faço esta humilde lembrança recomendando esta HQ que traz um olhar instigante sobre os povos originários brasileiros, e que acerta um tijolo na cabeça da ignorância pra usá-lo na construção de uma maior fortaleza de conhecimentos e sensibilidades humanas.
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